Do costume à lei:
Ou de quando a sociedade, com amor e confiança, (re)constrói o seu próprio Direito.
Resumo: É de comum discussão a aplicabilidade do costume como fonte do Direito. Lugar comum também são as discussões acerca da dissuetudo, ou do costume como meio de revogação tácita do Direito posto. A possibilidade aqui apresentada permeia a teoria das fontes do Direito, mas além vai ao apresentar o costume como meio de integração do sistema. Propõe-se que a sócio-afetividade (que antes se encontrava em um vácuo jurídico) foi recebida no espectro legal a partir da publicação da Lei Clodovil. Assim, somada ao costume e às práticas reiteradas que ligam pais/mães/filhos, defende-se que, hoje, possui o Brasil um terceiro gênero legal de formação da filiação, ao lado da civil e da natural, a proveniente da afetividade.
Sumário: 1 – Todo voo tem um começo 2; 2 – Todo Direito tem um início 4; 3 – Todo caminho tem seus desafios. Firmando a (nova) visão. 14; 4 – Todo percurso tem seu fim. E todo fim é apenas mais um começo. 19; Bibliografia 20
"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim".
(Chico Xavier)
1 – Todo voo tem um começo
Neste trabalho busca-se delinear as fontes do Direito, aceitas tanto no sistema jurídico Brasileiro quanto Argentino. Esta discussão, no entanto, vai se apresentar como pano de fundo para algo maior, uma busca ainda mais interessante. Tentar-se-á, como base na estrutura do costume, avaliar a possibilidade jurídica de reconhecimento do vínculo de filiação sócio-afetivo, tendo por norte as leis em vigor nos dois países e os costumes socialmente estabelecidos (sendo estes não apenas fontes, mas meios de interpretação).
Para tanto, necessária uma revisão da bibliografia jurídica existente, passando por clássicos mundiais, visando caracterizar a estrutura da prática consuetudinária como fonte do Direito e, logo, o costume como norma jurídica.
Para que se não fique a repisar o que os grandes pensadores já trabalharam de forma importante e exaustiva, ter-se-á um ponto primário de discussão, que é a formação cultural da sócia-afetividade (ou simplesmente vínculo afetivo).
É comum, tanto no Brasil quanto na Argentina, a existência de relações paternas ou maternas fundadas em situações de fato, e não de Direito. Em terras tupiniquins esta circunstância gerou o termo “adoção à brasileira”. Mas, até que ponto pode-se utilizar esta prática comum e reiterada como fonte de Direito? Até onde este costume pode normatizar (ou complementar) a vida social, reconhecendo o vínculo e a ele atribuindo efeitos de cunho sucessório, alimentício, previdenciário etc.?
Ainda, seria este costume uma formação contra legem e, assim, quedar-se-ia inerte e impotente diante dos Tribunais que não reconhecem tal forma de costume? Ou seria uma prática que se antecipou ao pensamento legislativo ou mesmo vem a ele ser complementar?
São estas dúvidas o norte, o pano de fundo. Mas os elementos da caminhada são sustentados pelo interesse em se proteger e resguardar aquele que se viu filho pela vida inteira e que, ao findar a vida dos pais, não foi reconhecido pelo Direito como legítimo herdeiro. Também o caso do pai que ao descobrir não o ser; que, ao desvelar o segredo de que não é pai, mas sim um traído, faz desaguar sua ira sobre a criança, negando-lhe não só o afeto, mas também o sustento material.
Várias são as possibilidades, mas só um o vértice: a proteção da dignidade daquele que se viu despojado não só de um patrimônio, mas de um nome, uma história, uma vida. Daquele que veio saber que ele e as pessoas que o cerca não são que ele sempre pensou serem.
É o que se apresenta a título introdutório. Deve-se, agora, caminhar em busca das dúvidas e de suas, possíveis, soluções.
2 – Todo Direito tem um início
A Ciência
O ser humano , em seu afã existencial, busca a cada momento definir , classificar , fragmentar o espectro do conhecimento para suprir suas limitações . É deste modo que se observa o grande volume de áreas e subáreas do saber . Cada uma delas objetiva delimitar o âmbito de análise , tendo-se, assim , uma visão do homem enquanto homem social e realizador de atividades em seu meio (Sociologia ); um estudo dos fenômenos da psique humana , necessária para que se compreenda as suas manifestações (Psicologia ); pode-se preferir analisar os fenômenos que ocorrem no mundo , seja no aspecto físico (Física ) ou químico (Química ); etc.
“o termo ciência pode ser tomado em duas acepções fundamentais distintas: a) – como ‘todo conjunto de conhecimentos ordenados coerentemente segundo princípios ’; b) – como ‘todo conjunto de conhecimentos dotados de certeza por se fundar em relações objetivas confirmadas por métodos de verificação definida , suscetível de levar quantos os cultivam a conclusões ou resultados concordantes’” (REALE, 1998: 73)
Deve-se compreender que , de acordo com o item “a” da definição , a base das ciências seria a construção e a percepção da existência de princípios , máximas construídas para definir caminhos e unir conceitos .
As ciências , para se construírem, necessitam de um arcabouço básico , para que elas detenham unidade e sentido . É como se cada ciência fosse uma obra de engenharia , em que cada engrenagem, tijolo, armação, já se encontra em seu local definido em uma planta-base, além de necessitar , quando de seu real encaixe , obedecer ao prumo , ao esquadro etc. Tanto o prumo , quanto o esquadro são exemplo das funções dos princípios . Note-se, eles (o prumo e o esquadro ) não fazem parte da obra , mas possibilitam sua construção , organizando o seus elementos .
O que é exato é o momento , o fragmento (tanto o do observador-solo quanto o observador-avião), mas não o conjunto . Daí o por que a ciência é fragmentária e a perfeição do conceito acima definido , pois
“se examinarmos bem , veremos que o ‘exato ’ é neutro e a-histórico. O ‘exato ’ pode revelar-se em dado momento da história , mas não se historiciza. A exatidão de um teorema de Pitágoras é a mesma há dois mil anos , como daqui a outros mil . Na Ásia ou na África, ela independe de qualquer estimativa , de qualquer valoração: - só o valioso se historiciza, o que se compreende por ser o valor uma dimensão do homem realizando-se com ele na história ” (REALE, 1998, 71)
O ensinamento de Miguel Reale denota que a exatidão se extrai da avaloração, mas não só isto , é necessário que o observador seja o mesmo , pois apesar do valor que ele atribui para o fenômeno não importar , importa o método como ele apreende o objeto . Não se trata de definir que o exato só existe se as condições se mantiverem ceteris paribus, pois isto é afirmar que ele é exato para certas condições . Pelo contrário , o local onde se encontra o observador não é condição , mas meio de apreensão ou observação do fenômeno . Condição seria a direção do vento , o clima , densidade atmosférica, etc. As condições são as mesmas, apenas os observadores que deitam sua atenção sobre o fato (simultaneamente) é que variaram.
Pode-se notar que muitas das vezes o objeto das ciências podem ser os mesmos (até por que , limitados), uma vez que o objeto nada mais é do que um fenômeno da existência , seja ele mais próximo da química , da física , da biologia , etc. Quando uma pessoa levanta o seu braço , este acontecimento pode interessar tanto à Psicologia (qual a finalidade racional do movimento ?), à Sociologia (qual a finalidade social do movimento ?), à Química (qual a funcionalidade reacional necessária ao movimento ?), à Biologia – Fisiologia (quais as estruturas orgânicas necessárias ao movimento ?), etc. Com isto , chega-se à conclusão que o que diferencia as ciências entre si é o conteúdo do método .
Por fim, vale frisar que neste estudo , método não se restringe aos conhecidos “indutivo ” e “dedutivo ”, mas sim mais se aproxima da ideia de modo de apreensão , ou perspectiva de análise . Isso se dá pelo fato de que se apenas houvesse dois métodos , e como o objeto é limitado, parcas seriam as ciências .
O Direito
De acordo com o que se disse acerca das ciências , resta determinar se o Direito seria ou não uma delas. Antes , pode-se buscar conceituá-lo, de acordo com os principais doutrinadores que o fizeram.
Carnelutti, em uma definição apertada e simples , mas em total acordo com a obra em que ela se encontra , explica que
“na mente de meus ouvintes , a palavra direito suscita a idéia de lei ; inclusive a desses conjuntos de leis que se chamam códigos . É uma definição empírica , mas provisoriamente podemos aceitá-la: um conjunto de leis que regula a conduta dos homens .” (itálicos do original ; CARNELUTTI, 2001: 7)
A definição do mestre processualista vem a auxiliar em um passo inicial , pois o primeiro momento da cognição é justamente a apreensão empírica ou espontânea , para só depois os aparelhos superiores do raciocínio desencadearem o referido processo .
Ruggiero, em apanhado valoroso , esclarece que era
“partindo do conceito de ordem e harmonia que Dante definia o direito como ‘realis et personalis hominis ad hominis porportio, quae servata societatem corrupta corrumpit’[i] (De Monarchia, II, 5), concebendo o direito como uma proporção , uma harmonia , uma ordem que preside à vida social e à tutela , definindo-o Stal (Die Philosophie des Rechts, II, 1, p. 191 e segs.) como ‘a ordem das relações da vida que formam a existência comum dos homens ’. Kant (Metaphisyche Anfangsgründe in Kant’s Sämmtliche Werke. Leipzig, 1938, IX, p.33 e segs.), pelo contrário , parte do princípio da liberdade e do princípio da condicionalidade, definindo-o como o ‘conjunto de condições mercê das quais o arbítrio de cada um pode ser compatível com o arbítrio dos outros , segundo uma lei universal de liberdade ’; e Krause (System der Rechtsphilosophie, p. 50 e segs.) acentuando ainda mais a idéia de condicionalidade, define-o como ‘a totalidade das condições dependentes da liberdade para a realização dos próprios fins ’. Donde se conclui que o direito é um sistema de limites ”. (RUGGIERO, 1999: 34).
Montesquieu, sempre lembrado por sua ojeriza à concentração do poder e calcado em sua idéia de que o Direito é a razão do Governo dos Povos , exercido em consonância com o bem-estar comum , esclarece que
“a lei [ii] em geral , é a razão humana , tanto que ela governe todos os povos da Terra ; e as leis políticas e civis de cada Nação não devem constituir senão casos particulares em que se aplica a razão humana . Elas , as leis , devem ser de tal forma apropriadas para o povo , para o qual são feitas , que será grande coincidência se as leis de uma Nação servirem para outra ” (MONTESQUIEU, 1998: 83)
Explanaram-se dois aspectos para classificar um ramo do conhecimento como ciência , de um lado a base principiológica e de outro a exatidão . Obviamente não se poderia dizer tratar-se o Direito de uma ciência no segundo aspecto , pois não é o raciocínio jurídico um raciocínio exato , mas sim meramente especulativo , a partir da idéia de que “as palavras são especulativas, e toda interpretação é especulativa , uma vez que não se pode crer em um significado infinito , o que caracteriza o dogma ”. (NUNES JÚNIOR , 2003, citando STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise : uma exploração hermenêutica em construção do Direito . Porto Alegre , Livraria do Advogado , 2000, págs. 165-6)
Veja-se que não se trata de sofisma afirmar que o Direito é ciência , pois a presença de princípio s gerais é mais do que aceita em toda a doutrina jurídica , existindo discussão acerca do seu conteúdo , mas não lhes negando existência .
“os princípios gerais de direito constituem uma reminiscência do direito natural como fonte . Há autores que os identificam com este , outros que os fazem repousar na eqüidade , enquanto sentimento do justo no caso concreto . Sua formulação é indefinida . Há quem os reduza, em última análise , aos famosos preceitos romanos : honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere[iii].” (FERRAZ JÚNIOR , 1994: 247)
“uma teoria do Direito deve, antes de tudo , determinar conceitualmente o seu objeto . Para uma definição do Direito , é aconselhável primeiramente partir do uso da linguagem , quer dizer , determinar o significado que tem a palavra Recht (Direito ) na língua alemã e as suas equivalentes nas outras línguas (law, droit, diritto, etc.). (...) Com efeito , quando confrontamos uns com os outros os objetos que , em diferentes povos e em diferentes épocas , são designados como ‘Direito ’, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana . (...) As normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana ” (KELSEN, 1998a: 33)
As fontes do Direito[iv]
O Direito apresenta suas fontes sob cinco signos: a) as fontes formais; b) as fontes históricas; c) as fontes jurisprudenciais; d) as fontes doutrinárias; e, por último, e) as fontes consuetudinárias. Passam-se todas em revista.
A fonte formal é a fonte por excelência do Direito. É a sua forma primária de manifestação. Compreende-se como fonte formal toda manifestação da atividade legislativa do Estado, seja proveniente de qual poder for. Quando o poder Legislativo publica uma lei, quando o Executivo faz um Decreto ou Resolução e, por fim, quando o Judiciário faz baixar uma Portaria, em todos estes casos está-se diante da fonte básica do Direito.
Dentre as fontes formais, uma tem destaque. A Lei. Ela se apresenta como a fundamental fonte formal, a mais importante. Tanto é assim que o princípio da Legalidade Estrita nela se funda, ao afirmar que “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei”.
A Lei possui duas características, a generalidade e a obrigatoriedade. Geral se entende por não poder contemplar situações individuais no plano abstrato. Veja-se, ela pode, ao ser aplicada, acabar por influenciar a vida de apenas algumas pessoas, mas quando de sua previsão não se pode aceitar venha ela a prever situação que seja única, pontual. Deve ocorrer uma previsão abstrata, dotada de generalidade. Uma lei não pode contemplar, no plano abstrato apenas uma (algumas) pessoa(s).
A obrigatoriedade é uma característica lógica da lei. Sem sanção, sem uma imputação àquele que a transgrediu, não se está falando de lei estritamente. Apesar de existirem normas em que se olvide em determinar uma sanção para seu transgressor, é de se pensar que a razão maior do Direito, enquanto ciência do dever-ser, é regulamentar condutas e, só se regulamenta algo, quando se prevê para aquilo que lhe é contrário uma penalidade. Ao ser obrigatória a lei fecha o triangulo de imputação, vinculando previsão-conduta-realização, sempre que a conduta não realiza a previsão, a sanção surge para efetivar tal situação, gerando um efeito contrário ao desejado pelo agente (prevenção especial) além de incutir nos demais a compreensão de que é necessário cumprir a norma (prevenção geral).
A historicidade do Direito é refletida pelas fontes históricas. Centenas de institutos que vão desde a servidão até o matrimônio possuem uma formação ao longo da existência humana, seja esta formação jungida ou não à religião. A influência da cristandade sobre o Direito (revendo o conceito de boa-fé); a influência dos deuses lares determinando a cerimônia da entrada da mulher no novo culto ou mesmo a primária formação da relação de servidão predial; a enfiteuse, nascida da necessidade expansionista romana; o poder familiar, esculpido, ao longo das eras a partir do duro mármore do pater familias; todos são exemplos da relação do Direito com a História, e demonstram que apesar de um instituto ser utilizado em dado momento por força da necessidade social, muitas das vezes ele possui uma longa trajetória, lembrada ou perdida no correr dos séculos. Poucas são as verdadeiras inovações jurídicas, no mais das vezes o que se tem é uma revisão do que já foi amplamente utilizado e de praticidade comprovada.
As decisões dos Tribunais ocupam hoje o termo que antes, definia a própria ciência do Direito (Jurisprudência). Em cada sentença ou acórdão o Judiciário manifesta sua visão do Direito, a interpretação que melhor se amolda ao caso concreto. Este conjunto de decisões, reiteradas ao longo do tempo, formam uma base sólida que demonstra o pensamento dos juízes, a caminhada que o processo, provavelmente, terá. A visão do precedente se torna importante para a solução das novas lides, tendo-se por fundamento o leading case, o caso destaque que se apresenta como exemplar para a decisão. Eis as fontes jurisprudenciais.
A opinião dos doutos em Direito, dos grandes estudiosos das letras Jurídicas é a quarta fonte. A fonte doutrinária pode ser compreendida como a formulação majoritária ou de relevância acerca de dada questão. No mais das vezes, antes de as partes se digladiarem nos Pretórios, ocorre uma luta silenciosa, que ocupa as páginas dos livros, sejam eles manuais ou não, demonstrando o pensamento dos acadêmicos do Direito acerca de dada celeuma. Quando se aportam as discussões ao Judiciário é nas doutrinas que se vai abeberar para que se dê um desfecho justo à lide. Vezes outras, o Legislador busca na doutrina formas e ideias para a evolução do conjunto normativo de um país.
Chega-se, por fim, à fonte consuetudinária. Ela que se erige como objeto deste trabalho e pode ser compreendida como o nascimento de uma norma a partir da repetição social de condutas que não agridem a moral ou aos bons costumes.
Deve-se compreender que duas características essenciais definem as práticas consuetudinárias: o uso e a convicção de juridicidade (DINIZ, 2008: 313). O uso é o reiterado acontecimento social que dá a certeza e a previsibilidade necessárias para a regulamentação social. A convicção da juridicidade, por sua vez, determina que as pessoas se vejam vinculadas pelo costume, compreendam ele o certo a ser feito.
O costume, a norma resultante da fonte consuetudinária, pode se apresentar sob três formas: a) secundum legem; b) praeter legem; ou c) contra legem.
a) Costume secundum legem
Sob este signo aglutinam-se todas as práticas que apenas ratificam aquilo que é determinado pela lei. Pode também ocorrer quando a lei foi criada a partir de um costume que lhe era anterior. Após a criação da nova norma formal o costume perde sua característica de antecessor, perde sua primazia;
b) Costume praeter legem
É a formação social por essência. Trata-se daquela prática que ocorre à revelia da lei, na total obscuridade legal. O legislador, por sua burocracia ou falta de sensibilidade social, olvida em trazer para o universo jurídico escrito (aqui enquanto regra formal) os anseios sociais. Nestas situações, a própria sociedade constrói a sua realidade jurídica, suprindo a lacuna estabelecida.
c) Costume contra legem
Esta formação da prática é, com certeza, a mais controversa de todos, gerando grandes debates e discussões. As normas formas são, no mais das vezes, claras em vedá-la, criando um grupo de renomados que nela veem possibilidades e um segundo grupo que a ela atribuem papel de mera especulação didática.
Aceitar-se um costume contrário à lei pode gerar uma perigosa instabilidade do sistema jurídico, ao legar à incerteza as relações. Não se pode conceber tal proibição de forma absoluta, mas, nos estreitos limites deste trabalho não interessará delongar tal discussão.
3 – Todo caminho tem seus desafios. Firmando a (nova) visão.
O Brasil ganhou, no ano de 2009, a denominada Lei Clodovil (Lei Nº 11.924, de 17 de abril de 2009), em homenagem ao apresentador de televisão e deputado Federal Clodovil Hernandez. Em seu texto, determina esta lei:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1° Esta Lei modifica a Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta, em todo o território nacional.
Art. 2° O art 57 da Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar acrescido do seguinte § 8°:
“Art. 57. .....................................................................................................
....................................................................................................................
§ 8° O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2° e 7° deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.” (NR)
A partir desta lei aquele (no Brasil enteado ou enteada, na Argentina entenado o entenada) que é ligado a outrem pelo vínculo da afinidade na linha reta, poderá receber deste o nome, desde que seja ele seu padrasto ou madrasta. Justifica-se pelo fato de que, muitas vezes, este novo pai ou esta nova mãe cumprem muito bem seus papéis, legando ao infante a figura que lhe faltava. Valoriza-se o vínculo afetivo, à revelia do vínculo genético ou legal. Legal se diz por que a afinidade, como se sabe, não gera qualquer direito no espectro sucessório ou de alimentos. Genético, por que, por óbvio, não se está por discutir uma relação (vínculo) fundada nos laços de sangue.
Esta lei, no entanto, tem mais a declarar. Ela serve de portal para a demonstração do recebimento jurídico da relação sócio-afetiva, do vínculo sócio afetivo. Tanto Brasil quanto Argentina não reconhecem, legalmente, o vínculo de maternidade ou paternidade sócio-afetivo. E esta lei brasileira, para a terra tupiniquim, serve de um parâmetro definidor de direitos.
E como isto poderia ser possível? Observe-se que o costume pode, na compreensão da grande maioria da doutrina, apresentar-se como complemento ou suplemento da lei. Na ausência, ele compõe; na existência, ele amplia ou especifica. Assim age o costume no caso em tela, não como uma fonte, mas como um instrumento de interpretação do sistema.
As relações sociais são múltiplas e extremamente complexas. A família não surge nos estreitos do Direito. Surge na sarjeta, na favela, no palácio, nas mansões, em qualquer lugar. A família é o lócus da formação do sujeito e, como tal, não se limita ao que dispõe ou consegue determinar o legislador.
Para que se possa regulamentar os acontecimentos do seio familiar é necessário fazer uso do costume e das regras sociais para que se tenha meios de complementar o que o Estado Legiferante tentou mas não conseguiu.
Tenha-se em mente que não se defende uma utilização contra legem do costume, mas sim dele utilizar para complementar o que já está disposto. A cada passo o Direito pode ser ampliado, de modo a deixar-se o mínimo de relações a descoberto de regulamentação.
Neste sentido, a Lei Clodovil se apresenta como verdadeiro instrumento de recepção legal da sócio-afetividade, visto que reconhece entre as pessoas nela mencionadas uma relação que deve ser protegida e que estabelece um comunhão de vida, uma proximidade somente existente entre pai/mãe/filhos.
Nos códigos Civis do Brasil e da Argentina, pode-se observar:
Código Vélez – Art. 240 La filiación puede tener lugar por naturaleza o por adopción.(…)
Código Civil Brasileiro de 2002 - Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Mas, o que vem a ser a sócio-afetividade? Sabe-se que, em sede doutrinária, a filiação pode se estabelecer por três fontes (BORDA, 2009: 630-631): a fonte civil, a fonte genética e, mais recentemente, a fonte afetiva.
Pela fonte civil respondem a adoção e as presunções legais. Assim, no Brasil se determina que
Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 - Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
Na Argentina, por sua vez, estabelece-se que:
Art.323.- La adopción plena es irrevocable. Confiere al adoptado una filiación que sustituye a la de origen. El adoptado deja de pertenecer a su familia biológica y se extingue el parentesco con los integrantes de ésta así como todos sus efectos jurídicos, con la sola excepción de que subsisten los impedimentos matrimoniales. El adoptado tiene en la familia del adoptante los mismos derechos y obligaciones del hijo biológico.
O vínculo genético é, desde primórdios, a pedra fundamental da filiação, dignificando a pureza da estirpe e a continuidade das casas governantes. Foi este vínculo, também por séculos, o definidor da maternidade e o gerador das presunções (já que o pai era incerto, demonstrava as núpcias com a mãe). Quantos bastardos não sofreram na pobreza e quantos filhos de alcova alheia não se deleitaram nas taças da monarquia?
Mas quando se tem por vistas o vínculo de filiação o primeiro ponto que permeia a mente do indagado é a fotografia de família em que o pai está em pé, ao lado da mãe que traz em seus braços o filho recém-nato. Uma alegoria simples que, acompanhada por Jesus, Alegria dos Homens (Sebastian Bach), realizaria o sonho de algumas pessoas no mundo. Algumas, pois para outras esta figura nada refletiria. É necessário um espírito que ponha abaixo a letra morta, um espírito de afeto e carinho.
A tradição vem cedendo espaço para a realidade, casais standard não mais se apresentam como o único meio possível. Hoje a figura do pai pode ser ocupada por uma mulher e a da mãe por um homem. Faticamente, dois podem ser os pais, várias as mães. Não há brocardo[v] que sintetize a multiplicidade das relações de filiação.
A realidade é densa, pois não apenas se concebem filhos a partir do sexo, mas também a partir da lei e da ciência. Os acidentes e percalços da vida criam novas figuras de pais e filhos, assim como as técnicas de reprodução estabelecem novos meios de fecundação.
O turbilhão do existir dá azo a pensamentos novos, que, na realidade poder-se-iam dizer velhos pensamentos renovados, em que a figura do ascendente não mais se apresenta como contida dentro de um único sujeito. Pode-se mesmo afirmar que pai (ou mãe) são estados voláteis, mutáveis, não apegados a um parecer-para ou um ter-para-si, mas a um ser-com, um estar-junto-de[vi]. O vínculo de filiação não é posse/propriedade exclusiva de um, que afasta o outro. Mas esta visão ainda não se encontra firme para seu desenvolvimento[vii]. Ainda.
Ao tempo dos Códigos Civis, tanto Argentino quanto Brasileiro (aqui tratando-se do de 1916) não diversas eram as construções doutrinárias que se firmavam neste tempo, pois clara era a qualidade legitimatória dada ao casamento, única fonte jurígena da família. Alguns excertos da obra de Eduardo Espínola são esclarecedores quanto a tal função. Eis que
em acepção ampla, a palavra família compreende as pessoas unidas pelo casamento, as provenientes dessa união, as que descendem de um tronco ancestral comum e as vinculadas por adoção. (...) A família é constituída pelo casamento. (...) Pode-se definir casamento – o contrato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente constituem uma sociedade conjugal, origem de uma família legítima. O casamento é o contrato; a sociedade conjugal o objeto do contrato; a família legítima é o instituto que regula as relações que resultam da sociedade conjugal ou nela se desenvolvem. Sem casamento, não há relações legítimas entre os dois seres de sexo diferente, que se unem; nem entre eles e a prole que, porventura, da união se origine. (ESPÍNOLA, 2001: 9-11;51-55).
Note-se que as relações próximas ao casamento hauriam deste sua legitimidade, chegando-se ao cúmulo de legitimar até mesmo a prole, vez que a advinda fora de uma relação matrimonial se tinha por natural, desqualificada, ilegítima.
A vida é maior, e como tal, necessário que se reconheça a existência de relações não pautadas no sangue ou na lei, mas em um comento, uma massa diferente, interessante. O afeto, o carinho, ligam as pessoas.
Quando se pensa em vínculo sócio-afetivo se afirma que é possível reconhecer algo que não nos é dado a priori, mas sim de algo que nasce da experiência, do existir social. Não surge quando da concepção, mas do laço que se estreita a cada dia, com o viver e o conviver.
Não se baseia ele (o vínculo afetivo) em artigos, mas em abraços. Não se prova por certidões ou documentos, mas por estripulias e sorrisos. Não se impõe pela letra, mas se constrói pelo amor.
É este vínculo que, amalgamado no seio social desperta da norma pelo costumo que traz lhe à realidade jurídica e lhe fortifica.
4 – Todo percurso tem seu fim. E todo fim é apenas mais um começo.
Antes que o fim chegue, necessário é fazer uma advertência inspirada em Dante Alighieri[viii]. Mas como este que escreve tão parcas linhas não possui a verve do sumo poeta de Florença, faz-se uso do grande Raul Seixas (apoiado por Paulo Coelho), pois nestas linhas que cerram o pensamento, sem ele encerrar, adverte-se que: “quem não tem colírio usa óculos escuro, que não tem filé come pão e osso duro; quem não tem visão bate a cara contra o muro!”[ix].
A filiação é um fenômeno social e como tal não pode ser aprisionado pelo Direito. O sistema legal apenas tenta lhe capturar uma essência[x], um flash momentâneo do viver em sociedade. Assim, não se podem restringir as disposições legais ou delas fazer interpretações restritivas.
É necessário que se vislumbre em amplo espectro tudo o que ocorre. Não pode o Direito restringir o que a vida social não fez menor. A proposta aqui apresentada busca não apenas se estabelecer dentre os muitos modos de visão sobre a filiação sócio-afetiva, mas também parâmetro efetivo de aceitação jurídico-legal de tal forma de relação.
Legar as relações entre pai/mãe;filho às incertezas dos julgadores é por demais cruel e se apresenta como supressora dos direitos fundamentais resguardados pelas Cartas Constitucionais de todo o mundo.
Necessário se faz compreender que aquele que é criado como filho, filho deve ser. Não é mais aceitável que o sistema legal intente, sob o pálio da falsa segurança jurídica, deitar no limbo as mais amplas manifestações sociais que ligam as pessoas pelo afeto e o carinho.
É justo e correto fazer-se uso do costume como uma fonte auxiliar para ampliar o alcance da Lei Clodovil de modo a se apresentar como estrutura de validação legal da sócio-afetividade filial.
Bibliografia
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[i] Em tradução livre e interpretativa do autor : “é uma proporção real e pessoal , que se conservada, conserva a sociedade , corrompida, corrompe-a”.
[ii] Conforme explica Pedro Vieira Mota , em nota de número 79h, em muitas das passagens de sua obra , Montesquieu conceitua lei como sinônimo de Direito .
[iii] Em tradução livre e interpretativa do autor : “viver honestamente , não prejudicar aos outros , e dar a cada um o que lhe caiba.”
[iv] Por todo o que será explanado aqui, veja-se DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do Direito. pp. 308 usque 319.
[v] Aqui, uma alusão aos brocardos mater semper certa est e pater is est quem nuptiae demonstrat.
[vi] As expressões ligadas por hífens são utilizadas em paráfrase às construções de Jean-Paul Sartre, em O ser e o nada.
[vii] Apenas a título de exemplo, veja-se FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. pp.476, onde os autores afirmam que “a liberdade de cada pessoa de efetivar a filiação pode ser realizada através de mecanismos biológicos (através de relacionamentos sexuais, estáveis ou não), da adoção (por decisão judicial), da fertilização medicamente assistida ou por meio do estabelecimento afetivo puro e simples da condição paterno-filial. Seja qual for o método escolhido, não haverá qualquer efeito diferenciado para o tratamento jurídico (pessoal e patrimonial) do filho”.
[viii] Lembra-se, neste momento, da advertência existente à porta do Tártaro, onde se percebe “deixai toda esperança, ó vós, na entrada.(Canto III, 7)
[ix] Letra da canção “Como vovó já dizia” de Paulo Coelho e Raul Seixas.
[x] En esta materia, las instituciones jurídicas no hacen sino reflexar la vida de esa sociedad natural que es la familia. (BORDA, 2009: 697).
2 comentários:
Ficou muito bom!!!Parabéns!!!
Obrigado Leandro!
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